Crítica: "Aquarius"

Aquarius
Drama
Data de Estreia: 01/09/2016
Direção: Kleber Mendonça Filho
Distribuição: Vitrine Filmes


Parte 1: O Filme de Clara
 
Ancorado num estudo de personagem que por sua vez se estrutura a partir de uma trama bem definida daquele que é o principal motor do cinema, o conflito, Aquarius apresenta uma história de antagonismos complexos que, é claro, tendem para a protagonista do longa: Clara. Estudando a forma como a memória se projeta em objetos do nosso cotidiano nas mais variadas formas, a abordagem do longa é genial já que, para estudar a vida e a psique de uma personagem, este se constrói solidamente dentro de metáforas sócio-políticas que fazem com que o próprio longa transcenda em significado, se tornando um objeto que é a própria projeção de um Brasil atual.

Assim, discutir Aquarius é compreender suas metáforas e ferramentas narrativas, algo que me leva a avisar o leitor desde já que dividirei este texto em duas partes, pois julgo impossível demonstrar toda a fluidez de temas dentro do longa sem abordar certos aspectos específicos da trama. Portanto, nesta primeira parte discutirei a narrativa de forma mais tradicional para depois ir mais a fundo em minha abordagem.
Dividido em três partes (“O Cabelo de Clara”, “O Amor de Clara” e “O Câncer de Clara”), que por sua vez funcionam também como uma construção de três atos, algo não tão comum quando falamos de estudo de personagem, mas necessário visto o ponto que a narrativa quer desenvolver, o longa apresenta uma fluidez magnífica em sua história, com soluções elegantes, surpreendentes e plausíveis para cada confronto estabelecido. Assim, a obra conta a história de Clara, última moradora do edifício Aquarius, e que se vê pressionada constantemente para vender seu apartamento por uma construtora que quer demolir o prédio (ícone de lembranças e do passado da moradora) para construir o “Novo Aquarius” no local, tornando o filme um olhar profundo sobre resistência e memória, estabelecidos numa luta entre o aparente progresso econômico e as motivações completamente passionais que são a composição básica da protagonista.
Fica claro como a lógica corporativista de crescimento em urbanização gera um vilão digno de se temer e odiar. Estou falando, é claro, da construtora “Bonfim Engenharia”, que por sua vez se estabelece em significado na figura jovial e educada de Diego, o antagonista perfeito para Clara já que a ambição deste em sua lógica de mercado tão “superior” (uma visão que o jovem possui e que fica clara quando este ressalta sua formação acadêmica dos EUA) se torna uma motivação orgânica com uma perspectiva até mesmo passional. Para tanto a atuação perfeita de Humberto Carrão traz toda a dubiedade em seu tom passivo-agressivo, mas de olhar extremamente expressivo, soando ameaçador e desprezível em sua lógica que chega (sem maiores surpresas) a destilar racismo e meritocracia.
Atuações como esta são uma tônica no longa, já que este conta com um elenco homogêneo em sua qualidade, mesmo quando cabe aos atores pequenos momentos e diálogos. Isto fica claro numa excepcional cena de um embate familiar envolvendo os filhos de nossa protagonista e que tem o tom certo de melancolia quanto mágoas do passado, tudo ancorado no toque certo de realismo dos diálogos.  E assim, o elenco desempenha suas funções de maneira perfeita, mas é mesmo Sonia Braga quem se destaca por completo em “Aquarius”, estando absolutamente fenomenal em sua expressão corporal e de entrega máxima em cena. Aqui a veterana atriz possui o mesmo magnetismo de início de carreira, culminando num desempenho que funciona num crescente de intensidade e nos estregando aquela que talvez seja sua atuação mais brilhante.
É claro que Braga pode contar ainda com um roteiro que possibilita uma construção multifacetada de Clara, que se auto-define como uma mistura de “velinha com criança”. A construção de nossa protagonista (e este “nossa” se encaixa perfeitamente na conexão que ela gera com o espectador) é certeira para que compreendamos suas motivações mesmo que possamos discordar dela, temendo por sua segurança. Clara é ainda uma mulher com um apuro extremamente sensível para explicitar a relação complexa entre um objeto, a história que este contém e representa e a ressignificação deste com o passar do tempo – o que fica explicito na brilhante cena na qual a personagem, durante uma entrevista, toma um álbum de John Lennon em suas mãos e conta o trajeto deste até sua posse e toda a história presente no vinil.
Assim, Clara é uma heroína que não é plana, não apresenta os simples aspectos de “mocinha” em perigo, como também não é uma mera figura alegórica, pelo contrário, Clara tem vida. A sexagenária é capaz de tomar atitudes e dizer coisas por mero capricho, demonstrando uma mistura perfeita de fragilidade emocional e segurança auto-afirmativa, tornando-se uma personagem interessante desde a primeira sequencia do filme que se passa em 1980. Aliás, é nesse momento que o longa já toma a plateia pelo coração ao construir o sentimento de nostalgia adequado e necessário para o resto da projeção, contando ainda com a ajuda perfeita de uma trilha sonora absurda em sua qualidade.
Dirigido com segurança por Kleber Mendonça filho (diretor do excepcional “O Som ao Redor”), o realizador lança mão de diversos recursos narrativos interessantes que são comuns na linguagem cinematográfica, mas completamente inventivos quando combinados neste longa. Assim, somos brindados com Zooms que funcionam como plano detalhe, Split Focus e até mesmo uma abordagem de plano contra-plano que coloca a câmera dentro da conversa das personagens e não sobre seus ombros, trazendo dinamismo imagético para sequencias de diálogos também muito importantes para os simbolismos do filme.
Mendonça transforma ainda o edifício Aquarius em uma forma de entidade com vida própria, já que tudo a sua volta parece ter sua própria história, algo ressaltado com maestria num movimento de câmera que transita de um casal que transa escondido no mato, para uma praça com pessoas se divertindo até que, num recuo da câmera, percebemos que estamos tendo uma vista de dentro do apartamento de Clara (e há ainda outras alegorias que discutirei melhor na segunda parte do texto). Outro sinal de uma abordagem genial em sua simplicidade é detectável na sequencia da festa passada nos anos 80 logo ao início do filme e que diante de nossos olhos vai desaparecendo para dar lugar ao presente, gerando um sentimento quase que fantasmagórico quanto a presença de tais lembranças – e o fato de que a mesma música está tocando em ambos os momentos só reforça essa perspectiva evocativa quanto ao passado.

Como se não bastasse todas estas qualidades, o filme sabe ainda ser politicamente relevante em seus comentários sociais interessantes mesmo quando estes são passageiros – e a divisão de uma praia entre a área rica e pobre a partir de um cano de esgoto, ou mesmo o contraste criado pela sombra de um imenso prédio comercial sobre um bairro humilde, revelam muito sem soar simplório. Aquarius é ainda um filme que apresenta o desejo e satisfação sexual feminina de maneira plenamente natural, trazendo tantos signos em sua composição dramática que me foi necessária uma segunda visita ao filme para que eu pudesse perceber mais sobre suas facetas. O longa brasileiro é um filme maravilhoso com uma sensibilidade que nunca destoa de sua coerência narrativa, um deleite cinematográfico calcado na memória e na nostalgia para discutir questões completamente atuais.

Excelente

Por Han Solo
Parte 2: O Cabelo, o amor e o câncer de Clara 

(AVISO: CONTEM SPOILERS)
Como já apontei mais acima, “Aquarius” apresenta elementos que em sua superfície e estrutura são representantes diretos de acontecimentos da história ao mesmo tempo em que funcionam como metáfora de estudo de personagem. Tal abordagem é escancarada pelas rimas temáticas e visuais nas subdivisões do filme (novamente, “O Cabelo de Clara”, “O Amor de Clara” e “O Câncer de Clara”) que possuem um aspecto cíclico para a história da personagem como a própria deixa claro na sequencia final do filme ao afirmar “Hoje, sabe… Eu prefiro dar um câncer do que ter um”. Assim, os elementos que dão nome às divisões do filme salientam o arco dramático bem estabelecido de uma pessoa que já batalhou com um câncer e venceu, ainda que tenha perdido “um pedaço” de si (a cicatriz no seio direito).
Quando o roteiro de Kleber Mendonça se aprofunda em tais elementos para desenvolver seus simbolismos é que Aquarius realmente transcende o aspecto de um filme comum. Logo, o que realmente estamos acompanhando é novamente a luta de Clara contra um câncer, ou pelo menos é assim que a protagonista encara não só com a frase que apontei acima, mas também por literalmente (e nesse caso me atrevo a escrever esta palavra) o edifício Aquarius ser a vida de Clara. O apartamento representa todas as memórias de sua luta, bons e maus momentos, e é irrefutável que a memória e nossas experiências moldam quem somos hoje. Clara não quer vender seu apartamento por este ser a representação própria da sua vida atual, por este funcionar como uma extensão direta dela e preservar o prédio (inclusive pintá-lo) é uma forma de se auto-preservar.
Esta mensagem mais geral talvez soe óbvia para o leitor, contudo, procuro apontar que caminhos o roteiro resolveu seguir para resultar em tal leitura. Temos portanto um prédio vazio que talvez simbolize a partida de amigos queridos ou pessoas próximas (algo presente dentro de diálogos de Clara tanto no clube quando esta vai dançar, quanto na cena que anda pela praia com seu sobrinho e namorada), sendo a protagonista a remanescente de seu próprio tempo. Assim, o edifício chega a servir como disposição geográfica da memória de Clara, algo ressaltado na cena em que, tentando lembrar o nome de uma antiga empregada que havia trabalhado ali, Clara necessita adentrar até seu quarto (o ultimo do apartamento, ficando mais ao fundo) para que possa relembrar o nome, com o filme brincando ainda com o fantástico ao literalmente colocar a empregada passando pelo corredor antes da protagonista conseguisse relembrar.
Assim, a resistência por se manter no apartamento é também um ato de resistência para manter sua própria vida, tentando não sucumbir ao “novo câncer”. Nessa batalha por sobrevivência o edifício parece respirar com suas lembranças, um elemento presente na rima temática da brisa de vento presente na sequencia no início do filme e que parece voltar quando Clara entra em seu apartamento e está tocando a música de Gilberto Gil “Toda Menina Baiana”, já que um sopro de vento forte fecha a porta da cozinha com um estrondo. Ainda assim, o maior símbolo desta rima temática é mesmo o momento que Clara dança feliz e de cabelos soltos como que num ato de purificação com a nostalgia presente da música e a ventania é tão forte que derruba a tela de proteção do prédio – ventania esta que já dava sinais de aparecer quando a protagonista volta para casa após um potencial parceiro sexual parecer se intimidar com o fato de Clara ter perdido um dos seios.
Tal ocorrido é de extrema importância para a narrativa, já que Clara está marcada literalmente para sempre com uma cicatriz que representa uma memória constante em sua vida como resultado do nódulo em seu seio (uma das muitas investidas do filme em utilizar um objeto ou fato em específico para ressaltar todo um sentimento). Dessa forma, “O Cabelo de Clara” trata das marcas da sua vida, algo presente tanto na cena que esta é abordada pela primeira vez por Diego e que, num sinal de resistência e determinação, a protagonista solta os cabelos como se reafirmasse não deixar mais que os encurtem, significado que também está presente na letra de Taiguara, “Hoje”, que abre e fecha a película:

 

“Hoje trago em meu corpo as marcas do meu tempo

 

Meu desespero, a vida num momento

 

A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo…

 

Hoje trago no olhar imagens distorcidas

 

Cores, viagens, mãos desconhecidas

 

Trazem a lua, a rua às minhas mãos…”

 

 

O Caráter cíclico (que fez com que algumas postagens na internet caracterizassem “Aquarius” como parte da teoria de Eterno Retorno de Nietzsche) se apresenta mais forte aqui, já que a música aponta para as duas batalhas que deixaram marcas, tanto sua luta em 1980 quanto a atual contra a “Bonfim Engenharia”. A vida de Clara foi atacada novamente, seu corpo foi abatido pois o edifício Aquarius não poderá suportar a destruição causada pelos cupins em sua estrutura, como se novamente a personagem tivesse perdido outra parte de seu corpo – e não é a toa  que quando descobrimos sobre os parasitas, Clara veste preto, num sinal de luto, e mantém seu cabelo solto, para no confronto com a construtora ela vestir uma roupa branca e prender seu cabelo, remetendo novamente as novas marcas de sua batalha.
Pois para Clara, e para o filme, é de extrema importância se manter ao menos vivo em memórias, pois estas transportam sua própria história e significados adiante. Um tema que fica ainda mais claro na cena passado no cemitério na qual uma ossada é retirada sem qualquer floreio ou piedade, sendo um toque de gênio por parte de Mendonça colocar uma lápide no canto do quadro com os dizeres “In Loving Memory”, remetendo com ironia a uma memória amorosa e carinhosa não mais presente. Assim, até mesmo o ato de pintar a fachada do prédio se torna uma forma de se manter viva, com um significado pessoal como se a própria Clara estivesse cuidando de sua própria estética, sendo a frase “se você gosta é vintage, se não gosta é velho” e a forma com que se sente ofendida pela filha não ter reparado na mudança feita no edifício dois indícios diretos de tais perspectivas pessoais.
Com tal concepção, a forma com que a passagem sobre O Amor (neste caso: desenvolvimento das relações humanas e afetuosas) é desenvolvida tem fundamental importância nas tais marcas de vida de Clara, desde a insegurança da personagem quanto a um parceiro sexual agarrar seu seio, como até mesmo na forma com que o garoto de programa parece “libertar” Clara para o prazer sexual ao soltar seus cabelos.
Dentro destas relações, aliás, estão presentes pontos importantíssimos quanto a uma construção mais profunda do longa em relação aos aspectos subjetivos de significado que certos lugares e objetos podem receber. O próprio edifício protagonista representa aparentemente para a filha de Clara um significado diametralmente oposto ao de sua mãe, já que num estouro de raiva o que vem a mente da mulher são lembranças melancólicas de um tempo longe de Clara.
Dessa forma, assim como o filme abre com fotos antigas que não possuem significados específicos algum para o espectador, é indiscutível como percebemos que para alguém (seja da produção do filme, quem tirou a foto, quem estava presente, etc…) representou um momento especial e específico, da mesma maneira que podemos ver uma armadura medieval postada num restaurante ou mesmo retratos antigos nas paredes deste que são tão impregnados de história quanto o álbum de fotografias da família de Clara, como no caso da cômoda que remete a dias de atividades sexuais prazerosas para tia Lúcia e que – em mais um desenvolvimento cíclico do filme – se tornam parte presente em outra sequencia de sexo.
Não é por mera coincidência que para resolver uma situação de tensão em um embate familiar, um personagem recorra a um livro que possui um significado específico para aquelas pessoas, assim como Ladjane beija a foto do filho num apego doloroso a uma imagem estática que recebe o carinho que o jovem não pode mais sentir. Isto tem revelações ainda mais interessantes na sequencia em que Clara, seu irmão e os filhos deste olham fotografias antigas de entes queridos que já morreram, numa completa nostalgia, e deixam um silêncio constrangedor cair sobre o ambiente quando a empregada doméstica mostra a foto de seu filho como quem está compartilhando do mesmo sentimento dos outros, contrastando uma melancolia dolorosa de pena com uma nostalgia também dolorosa de saudade.

Aquarius mostra também tal desenvolvimento subjetivo em sua narrativa com a genial decisão de nunca revelar o conteúdo dos papeis que ameaçam a empresa Bonfim, um recurso também utilizado na cena em que Clara sorri ao ouvir uma canção, fazendo com que o espectador saiba que ela está retomando uma lembrança ou um significado específico para aquela música sem que com isso tenhamos um mero vislumbre do que se trata, com a memória permanecendo somente para a nossa heroína. O que me faz dizer que se o leitor discorda da minha interpretação não há problema algum, pois admito que Aquarius é uma obra que hoje está impregnado com a minha própria subjetividade e memória – e sei que com a inevitável passagem do tempo os significados do filme tendem só a crescer dentro de mim.

Deixe um comentário